Quinta, 15 Dezembro 2016
Ministro Marco Aurélio recebe memorial em defesa das religiões de matriz africana
Pauta para julgamento no STF envolve um dos mais importantes fundamentos das religiões afro-brasileiras.
O relator do RE 494.601 no Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio, recebeu em audiência na quinta-feira, dia 15/12, o Babalorixá Pecê, acompanhado pelo Baba Egbé e de um dos coordenadores do GT Jurídico da Casa de Oxumarê, para tratar do tema da sacralização dos animais. Durante a audiência foram apresentados memoriais no sentido de oferecer argumentos para a defesa das religiões de matriz africana, esclarecidos aspectos culturais e religiosos, além de ressaltar a necessidade de tranquilizar as comunidades em todo o país, que serão afetadas por eventual decisão do STF que não legitime uma tradição religiosa e constitucional secular desta importante parcela das religiões do Brasil. Em anexo seguem os memoriais apresentados, fruto da contribuição de vários especialistas, a quem agradecemos o apoio nesta luta.
EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - STF
Assunto: RE 494.601
Excelentíssimo Senhor Ministro,
Ao cumprimentar V. Ex.ª, apresentamos breves considerações, na forma de MEMORIAIS, acerca do Recurso Extraordinário de vossa relatoria (RE 494.601), que aguarda pauta para julgamento neste Excelso Pretório, e que envolve um dos mais importantes fundamentos das religiões afro-brasileiras.
A Casa de Oxumarê, comunidade religiosa que representamos, é um dos mais antigos e tradicionais Candomblés da Bahia, situado na cidade de Salvador, cuja história remonta ao início do século XIX. Em 2016, a Casa completou 180 anos de sua criação formal, marcada pela resistência social e cultural do povo negro, e pela luta em defesa da tradição de nossos ancestrais, com compromisso social. Além de ser o templo matricial de uma grande comunidade religiosa espalhada por todo o país e pelo exterior, com mais de mil terreiros descendentes, a Casa de Oxumarê é instituição comprometida com a luta contra a intolerância religiosa e pela valorização do patrimônio cultural afro‐brasileiro. Por esses motivos, dentre muitos outros relevantes serviços prestados, foi reconhecida como sendo território cultural afro‐brasileiro pela Fundação Cultural Palmares, em 2002, como patrimônio do Estado da Bahia pelo IPAC, em 2004, e como patrimônio nacional pelo IPHAN, em 2014.
Como é de seu conhecimento, o RE 494.601 trata da constitucionalidade da Lei Estadual nº 12.131/04, em vigência no Rio Grande do Sul, Estado que conta com milhares de praticantes e seguidores das diversas religiões de matriz africana (Batuque, Candomblé, Umbanda etc.). Contudo, a decisão da Corte afetará direitos e interesses de milhões de adeptos das religiões afro-brasileiras que praticam a sacralização de animais. A lei foi sancionada em 2004 e foi responsável por uma alteração no Código Estadual de Proteção aos Animais do RS (Lei Estadual nº 11.915/03), inserindo o parágrafo único no artigo 2º, no sentido de que não são vedados os maus-tratos aos animais quando se tratar do “livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana”.
A Lei nº 12.131/04 acabou sendo objeto de uma ação promovida pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), sendo julgada pelo Pleno daquele regional. No julgamento, o TJRS, por maioria, julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, entendendo que a Lei nº 12.131/04 é compatível com a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.
Para o TJRS a Lei nº 12.131/04 está em conformidade com a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, em dispositivos decorrentes da Constituição da República. Diante da decisão houve a interposição de Recurso Extraordinário do Ministério Público do Rio Grande do Sul para ser julgado por este Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de analisar a constitucionalidade da lei estadual frente à Constituição Federal. O Recurso Extraordinário do MPRS foi admitido e encontra-se aguardando pauta para julgamento no Plenário.
A legislação internacional e nacional em vigor respalda a sacralização de animais por qualquer religião no Brasil ou no mundo. Não há que se falar em sacrifício, posto que, os animais ofertados, são divinizados, compreensão própria do campo da religiosidade. Alguns defensores dos direitos dos animais cunham os cultos afro-brasileiros de responsáveis por maus tratos aos animais. Ora, maus tratos tem outro significado. Pensar diferente levaria à conclusão de que todos os abatedouros de animais estariam praticando ilícitos, e que todas as pessoas que deles se alimentam seriam partícipes de tais atos.
As religiões tradicionais em África praticam a sacralização de animais há milhares de anos, e no Brasil, desde que o primeiro africano aqui pisou tal prática foi adotada dentro de uma experiência religiosa. Não há ponderação de bens e interesses, razoabilidade e nem proporcionalidade em qualquer decisão que proíba este aspecto religioso e cultural de uma tradição anterior à própria ideia de país. A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 216, aponta que o patrimônio cultural é o constituído dos bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, desde que portadores de referência à identidade. A proteção aos valores culturais de assegura o direito à diferença e à diversidade cultural. Ademais disso, a proteção à liberdade religiosa abrange vários aspectos: (i) opção em valores transcendentais (ou não); (ii) crença nesse sistema de valores; (iii) seguir dogmas baseados na fé e não na racionalidade estrita; (iv) liturgia (cerimonial), o que pressupõe a dimensão coletiva da liberdade; (v) liberdade do culto propriamente dito, o que inclui o aspecto individual; (vi) respeito aos locais de prática do culto; (vii) garantia de não ser o indivíduo inquirido pelo Estado sobre suas convicções; e (viii) proteção de não ser o indivíduo prejudicado, de qualquer forma, nas suas relações com o Estado, em virtude de sua crença declarada.
Assim, a proteção da liberdade religiosa consiste numa união indissociável entre consciência e crença, crença e conduta, conduta e culto, e culto e consciência. Há mais: no Brasil, as liberdades de crença e de culto são qualificadas como cláusulas pétreas. Junte-se a isso o fato de que a liberdade de religião, de culto e de liturgia é consagrada pela Constituição Federal em vigor, como direitos humanos fundamentais, prescrevendo ainda que o Brasil é um país laico, motivo pelo qual o Estado deve se preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, prestando proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões, devendo, contudo, existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e as religiões em geral, não podendo existir nenhuma religião oficial, nem permissividade à intolerância e aos fanatismos.
A ignorância sobre os motivos pelos quais (e por quais meios) os animais são imolados nas religiões de matriz africana; a intolerância de membros de outras religiões; e a irrazoabilidade de alguns militantes ambientalistas são alguns dos principais fatores que geram contrariedade à prática da imolação de animais, além de muitas controvérsias e litígios. Deve ser esclarecido que a sacralização de animais não é uma prática exclusiva das religiões brasileiras de matriz africana, prática essa adotada, por exemplo, pelos muçulmanos no sistema halal ou na religião judaica, com sua tradição kosher. A liberdade de religião implica liberdade de escolha da crença e externalização dessa crença com as práticas dos rituais e liturgias inerentes à religião, direito fundamental assegurado pela Constituição Federal de 1988.
Neste sentido, a realização de imolação de animais pelos adeptos das religiões, não contrariam os dispositivos legais que asseguram aos animais o direito ao bem-estar, vedando condutas que lhe inflijam crueldade e maus-tratos. Ao contrário, as religiões de matriz africana (em suas várias denominações) entendem os animais como sagrados e dignos de respeito. Depreende-se, portanto, que a questão suscita uma delicada polarização de interesses e direitos. Por isso mesmo, está submetida a esta E. Corte Constitucional que tem por missão pacificar as relações sociais, prevenir e compor os conflitos nessas relações.
No nosso entendimento, inexistem conflitos aparentes entre normas constitucionais introduzidas pela Constituição Brasileira, marco de uma talentosa capacidade jurídica em assegurar uma proteção aos direitos inerentes à pessoa humana, sobretudo na manutenção das tradições que se manifestam nos modos de agir, fazer e pensar do povo brasileiro. Este destino não admite cidadania amedrontada ou sobressaltada pelo fundamentalismo intolerante, que muitas vezes encapsula racismo e intolerância religiosa, a fórmula mais perversa e inaceitável de sujeição da pessoa humana.
Por último, na esteira da manifestação do r. Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros (fls. 688-690), representando o parquet nos autos, são os presentes MEMORIAIS para REQUERER o conhecimento e o desprovimento do recurso em epígrafe OU, no máximo o provimento parcial deste para retirar da norma questionada apenas a expressão “de matriz africana”, permanecendo o dispositivo com a seguinte redação: “Não se enquadra nesta vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões”.
Como lideranças com múltiplas responsabilidades perante o povo‐de‐santo e sua extensa comunidade, gostaríamos de agradecer a V. Ex.ª nossa oitiva nesse esforço de redução da violência causada pela intolerância religiosa, bem como a implantação de uma democracia substantiva no Brasil.
Por favor, receba na ocasião os nossos mais sinceros votos de elevada estima e distinta consideração.
Respeitosamente, pedem deferimento.
Sivanilton Encarnação da Mata (Babá Pecê)
Babalorixá da Casa de Oxumarê
Leandro Encarnação da Mata
Baba Egbé da Casa de Oxumarê
Melillo Dinis do Nascimento
OAB/DF 13.096
Representante do GT Jurídico da Casa de Oxumarê
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Tel.+55 (71) 3237 2859
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